O que é importante deixar claro aqui é que, quando falamos de artesanato neste livro, estamos nos referindo a
uma atividade que vimos disseminada por todo o Brasil e também por países da América Latina, de objetos que
são feitos em geral coletivamente (por grupos familiares e/ou de vizinhança) e que são ou podem ser reproduzidos
em série. Os objetos são projetados a partir de premissas habitualmente atribuídas ao design, como atendimento
a determinada função de uso, a partir do emprego de determinadas matérias-primas e determinadas
técnicas produtivas. As técnicas podem ter sido transmitidas por gerações da mesma família ou habitantes mais
velhos de uma comunidade ou podem ter sido “inventadas” recentemente por uma ou mais pessoas. Muito raramente
essas técnicas foram aprendidas na escola, mesmo nos casos em que os grupos artesanais pertencem à
classe média.
Essa caracterização é radicalmente diferente daquela que se entende por craft em outros países, em que as
técnicas são aprendidas em cursos universitários e são exercidas primordialmente por pessoas instruídas que
veem na atividade uma forma de auto-expressão - o que as aproxima mais da arte do que do design. Não são pe-
ças feitas em série, quando muito em séries limitadas, e em geral têm altos preços, compatíveis aos de obras de
arte. Essa visão é disseminada não só em países do hemisfério norte, como Holanda, Finlândia e Inglaterra. Na
Austrália, por exemplo, predomina essa visão. O Dictionary of Business and Management mostra bem isso, ao definir
craft como “uma ocupação manual que requer treinamento extenso, geralmente incluindo estágio como
aprendiz e alto nível de habilidade (por exemplo carpintaria, conhecimento em hidráulica operação de linotipo)”.
A realidade brasileira é próxima da que é possível encontrar em outros países da América Latina. Talvez seja
próxima também daquela de países africanos e da Índia, mas me faltam elementos para poder avançar em uma
comparação. Outro ponto a ser levado em conta é que muitos artesãos - melhor dizer artesãs, pois a grande
maioria é de mulheres - dividem essas atividades com outras. Nas áreas rurais, ela é intercalada com a agricultura.
Nos pequenos povoados e nas periferias, persistem os “bicos”, como montar uma pequena barraca com comida
numa quermesse ou festa popular local. Alguns homens dividem seu tempo, ainda, entre trabalho como
pedreiros e o artesanato.
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Vou me abster também a respeito do que diferencia
os vários tipos de artesanato, bem como
distinguir o que é arte popular. Num terreno
em que grassa a confusão terminológica, outros
autores têm feito isso com muita competência,
entre os quais se distinguem Ricardo Gomes
Lima, Júlio Katinsky e a dupla Lia Mônica Rossi
e José Marconi (ver indicações de texto em
bibliografia).
Além disso, a meu ver em muitos casos as
classificações em profusão mais confundem do
que esclarecem. Como diz Ricardo Lima: “(...)
alguns dizem que a louceira e a tecelã fazem
arte folclórica ou artesanato tradicional ou arArtesãs
da região da Lagoa dos Patos, Rio Grande do Sul:
classe média empreendedora.
Foto: Lucas Moura
Artesãos do Jalapão, Tocantis: o brilho de um capim que só existe na região.
Foto: Francisco Moreira da Costa/CNPCP
tesanato cultural ou artesanato de raiz. Se Benita se aventura um pouco mais e, deixando de lado a produção de
louça utilitária, modela alguns boizinhos, cavalos, patos e galinhas para brinquedo dos filhos, alguns dirão que
ela faz arte popular muitos consideram que a professora aposentada participa deste primeiro grupo quando
costura bonequinhas de pano mas que, já ao se dedicar à confecção de panos de prato, junta-se à vendedora do
shopping fazendo trabalho manuais ou manualidades. Para outros, porque ao confeccionar os ímãs de porcelana
fria esta última utiliza moldes e produz objetos em série, o termo que melhor se aplicaria seria industrianato,
isto é, misto de indústria e artesanato; já o expositor da praça, segundo alguns, faz artesanato hippie, o joalheiro
produz design contemporâneo e o pintor e a escultora produzem arte erudita ou arte contemporânea ou a verdadeira
arte, ou simplesmente arte, separados de todos os demais. Quantos termos, quantas classificações!”
Se a contemporaneidade dilui as fronteiras entre as áreas do conhecimento e atividades em geral, o fez mais
ainda naquelas que, por natureza, têm múltiplas facetas, como o artesanato e o próprio design. Nelas, as tipologias
se interpenetram e variam muito de um caso para o outro, escapando ao olhar cartesiano que, aqui seria
uma forma de aprisionamento.
Na mira do nosso olhar está do artesanato de raiz, mais marcado pela tradição, ao recém-inventado, em técnicas
e materiais diversos, todos eles praticados coletivamente por comunidades artesanais. Ao abordar a prática
artesanal que envolve faixas significantes da população, interessa-nos trazer à luz a união entre ética e estética
que esta em jogo nessas experiências, as quais podem ser incluídas dentro de um fenômeno mais amplo de inovação
social.
Socorro da Conceição, mestra na confecção de bonecas de pano de Esperança,
Paraíba, divide seu tempo entre o artesanato e a lida na roça.
Foto: Celso Brandão
NOTAS:
1. Definição adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no
International Symposium on Crafts and International Markets, Manila, Filipinas, outubro de 1997.
2. Dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa. Rio de Janeito 2007.
3, Grande Dicionário Larousse Cultural da Lingua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
4. “make in a skilful way (crafted a poem; a well-crafted piece of work).” The Concise Oxford Dictionary of Current
English. Oxford: Clarendon Press, 1990.
5. “n.1546, artizan; de I’ital. Artigiano, de arte <art>, lat. ars. 1. Celui, celle qui exerce une technique tradiotionnelle,
un métier manuel demandant une qualificantion profssionnelle, et qui travaille pour son propre compte, aidé
souvent de la famille, de compagnons, d’apprentis, etc. (...) 2. (Jusqu’au XVIIIe). Anciennt. Personne qui pratique
un art, une technique, même esthétique (cet emploi cumule les sens de artisan [1. artisan] et de artiste) (...). 3. Fig.
Auteur, personne qui est la cause de (une chose, une situation, une condition), avec une idée de persévérance, de
patience (...).” Le Grand Robert de la Langue Française. Dictionnaire Alphabétiwur et Analogique de la Langue
Française, Deuxième Edition.
6. “a manual occupation that requires extensive training, usually including apprenticeship, and a high degree of
skill (e.g. carpentry, plumbing, linotype operation.” Dictionary of business and management (second edition).
Austrália, 1983.
7. LIMA, Ricardo Gomes. Artesanato e arte popular: duas faces de uma mesma moeda?
http://www.cnfcp.gov.br/…/CNFCP_Artesanato_Arte_Popular_Gom…